Manuel Ferreira Ramos
(Advogado e Coordenador do Centro de Valorização de Eleitos Locais)
Em Março de 2020 também as Assembleias Municipais foram confrontadas com toda a alteração, objectiva e factual, dos seus normais procedimentos.
A alteração das circunstâncias motivou, de imediato, a alteração das regras procedimentais.
Desde logo, essencial, a forma de reunir.
Até então era completamente desconhecida, melhor não era sequer discutida, qualquer outra forma de reunião de um orgão colegial que não fosse presencial.
Recordar-nos-emos bem todos da excelente fundamentação de um parecer da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte[1] acerca da possibilidade de realização de reuniões em videoconferência.
A pergunta que então era colocada era a de se saber se, na verdade, seria legal, uma vez que tecnologicamente era já possível, a realização de reuniões colegiais por vídeo conferência.
A convocação da melhor doutrina administrativista, a chamada de Marcello Caetano ou de Freitas do Amaral, a comparação com as Assembleias Gerais das Sociedades não permitia mais do que a possibilidade excepcional, em momento originalmente excepcional no ciclo dos vivos, de temporariamente permitir, ainda receosamente e antes de legalmente clarificada, a realização de reuniões por vídeo conferência.
Num momento em que se caminha para o regresso ao ansiado passado, num momento em que podemos começar a antecipar um futuro mais próximo do passado, uma das questões que fica por resolver será a necessidade de revisão ou de actualização da teoria da forma de construção da vontade dos órgãos.
Como sempre a realidade ultrapassa a ficção ou, se se quiser, a imaginação e o espírito humano teve de dar respostas adequadas às novas circunstâncias.
De um momento para o outro, não estando a democracia suspensa como desde cedo os principais decisores fizeram questão de sublinhar, vivendo-se um mundo pandémico, momento único a ser vivido pelos decisores democráticos, foi necessário encontrar alternativas que mitigassem aquilo que também ia resultando da produção legislativa inovadora (só comparável ao esforço legislativo da troica) e que era, para alguns perigosamente, um reforço do poder presidencial do líder do executivo[2].
Teve aí a Associação Nacional de Assembleias Municipais (ANAM) um papel assinalável, e em particular o seu Presidente Albino Almeida, ao procurar, em tempo real, sensibilizar o decisor político e o actor legislativo para a necessidade de, de alguma forma, dar ao poder deliberativo (já não a decisão uma vez que a urgência que a todos assustava determinava e exigia imediatismo) pelo menos, mais e melhor informação[3].
Naquele tempo, adivinhando o que não era difícil adivinhar para quem minimamente conhece a condição humana e o palco político, o que se dizia é que, postergando a apreciação das decisões para o Verão de 2020, aí, no conforto de não ter tido de tomar decisões, de optar, de escolher, muitos desses eleitos seriam transformados em tudólogos.
A realidade , mais uma vez, veio comprovar a teoria estando ainda nós na altura prévia à apresentação de toda a despesa feita, em todos os concelhos ponto por ponto, item por item, cêntimo por cêntimo.
As Assembleias Municipais, os seus Presidentes e as suas mesas (orgão tão relevante como esquecido) rapidamente procuraram, inventaram, adequaram procedimentos.
Com os meios que tinham, com a sua autonomia própria que sempre significa a sua singularidade, conseguiram adequar da melhor forma os melhores meios para atingir os objectivos centrais da sua acção[4].
E rapidamente surgiu também a possibilidade não só de assembleias à distância mas também de assembleias mistas.
Nalguns momentos suscitaram-se dúvidas cerca da possibilidade de dispensa de eleitos mais idosos e, mesmo em assembleias presenciais, poder ser permitida a sua participação à distância[5].
O que resulta também desta experiência (para além da já referida discussão teórica da formação da vontade) é a óbvia chamada de atenção para as várias velocidades da digitalização do país.
Não são só as escolas, não são só os alunos a terem de viver num país a várias velocidades de circulação de informação.
Também as assembleias municipais foram confrontadas com essas diferenças e essas dificuldades.
Por isso, também por isso, na recente ronda que a ANAM fará, no âmbito daquilo que será a ANAM 2.R, a transição digital não deixará de ser assunto cimeiro.
Quando se fala de transição digital, de várias velocidades, não nos ficamos pela velocidade ou pela largura de banda.
Retomamos o assunto – apoio às Assembleias e aos seus membros- e a essa aplicação da mesma lei que incompreensívelmente faz com que haja assembleias em que os diversos grupos contam com assessores, com meios de apoio, com recursos humanos e outras nem sequer tenham aquilo que poderia considerar-se um mínimo apoio à mesa e ao seu presidente.
Quando se fala de transição digital falar-se-á também da facilidade de acesso dos membros das assembleias municipais aos documentos e aos processos em discussão e em análise. E se esse procedimento está, a partir de alguma fase, em formato digital isso facilitará também o acesso dos cidadãos a esse procedimento, a essa decisão.
Acreditamos que esse passo, o da digitalização, independentemente do apoio público e central que mereça, deverá sempre resultar também do próprio orçamento da assembleia municipal, que tem sido um assunto recorrente por parte da ANAM, nomeadamente em diversos artigos na Revista das Assembleias Municipais e dos Eleitos Locais (RAMeEL)[6].
Será, acredita-se, uma forma de aproximar os eleitores dos eleitos, de aprofundar a democracia e de desjudicializar a política.
Ou seja, podemos afirmar que a reunião do órgão assembleia municipal à distância ou em sistema misto fez escola e está aí.
Por quanto tempo? Para sempre?
Que alteração legislativa se consolidará e que alterações regimentais[7] haverá?
Numa palavra, o regime excepcional transformar-se-á em regra?
Um outro tema interessante foi o da transmissão on line das assembleias municipais.
Era um caminho que se vinha fazendo.
A ANAM, de resto, defendia uma maior vulgarização dessas transmissões tendo, de resto, em 2019 atribuído um prémio de boas práticas à Assembleia Municipal de Leiria devido à sua transmissão pelas redes sociais com interprete de língua gestual portuguesa[8] .
No entanto, sabemo-lo bem, em muitas assembleias essa transmissão era usada como arma de arremesso político.
Argumenta-se que tal transmissão provoca o aumento de conflitualidade, de agressividade, potenciando discussões judiciais de queixas criminais embora as excepções, verdadeiramente excepcionais no sentido de serem percentualmente ínfimas mas em que uma é sempre excessiva[9], ocorram em assembleias presenciais.
Não nos podemos aqui esquecer do novel, já com alguns anos, Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD) e do posicionamento sempre excessivo, exageradamente excessivo, dos operadores quando se confrontam com novos quadros jurídicos levando sempre ao extremo interpretações defensivas e trocando facilmente o essencial pelas dificuldades e pelas minudências.
Para alguns, o exercício de um cargo político, o confronto democrático nunca pode ser tolhido ou cerceado por qualquer protecção de dados.
A comparação, fácil, é com a Assembleia das Assembleias, a Assembleia da República.
Existe uma ARTV[10] em que, garantindo sempre o cumprimento do RGPD todas as sessões são públicas e transmitidas.
Poder-se-á sempre, e em rigor, dizer que, ao contrário do que que se passa na Assembleia da República, o público intervém nalgumas sessões.
Mas é certo que em audições na AR há quem não seja Deputado a intervir, a ser gravado e essa gravação (de som e imagem) é disponibilizada.
Sem aprofundar aqui o assunto, remetendo-o para outro momento, poder-se-á considerar aí alguma excepcionalidade quando a intervenção do cidadão diz respeito a qualquer assunto de foro pessoal que se entenda que merece especial protecção.
Assinala-se também a especial atenção que a RAMeEL tem dado a este assunto, nomeadamente com a publicação de um artigo da Professora Ana Neves[11] que, na opinião de alguns, continua a apontar para um caminho excessivamente restritivo.
Num momento de gravidade, perigoso, tormentoso, neste intervalo que se afigura como uma nova esperança do retomar da nossa vida normal, acredita-se que se conseguiram construir novas formas de participação, que essas novas formas atrairão mais cidadãos para a actividade política e que, se assim for, a tensão entre democracia representativa e democracia participativa aí estará para ser tema de discussão para os próximos tempos.
[1] Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, Utilização de Videoconferência nas Reuniões dos Órgãos das Autarquias Locais em Período de Risco do COVID-19, 2020.
[2] Vide, nesta publicação os artigos constantes da parte I.
[3] Artigo 3º, nº 2 da Lei 6/2020, de 10 de abril.
[4] Conforme poderá confirmar-se na seguinte ligação: https://assembleias.anam.pt/eventosams/assembleias-gerais-por-videoconferencia/.
[5] A participação política em toda a legislação sempre foi motivo de discriminação positiva sendo possibilitada a circulação mesmo a maiores de 70 anos para actividade política.
[6] Nomeadamente, Hugo Flores da Silva,” A competência da assembleia municipal ao nível da inscrição de dotações no orçamento municipal”, in Revista das Assembleias Municipais e dos Eleitos Locais, n.º 15, Julho-Setembro de 2020.
[7] A ANAM desde cedo tem vindo a sensibilizar as Assembleias Municipais para a atenção permanente às normas regimentais tendo publicado A valorização do papel e da eficácia das Assembleias Municipais: Um regimento-tipo, AEDREL, 2019, Paulo Trigo Pereira, Ana Fernanda Neves e Luís Filipe Mota Almeida, A valorização do papel e da eficácia das Assembleias Municipais: Um regimento-tipo, AEDREL, 2019.
[8] Conforme se poderá verificar na seguinte ligação: https://anam.pt/2019/eventos/premios-anam/
[9] Conforme se pôde ver pelo caso, ocorrido a 22 de Dezembro de 2020, relatado por diversos órgãos de comunicação social, em que durante uma reunião pública da câmara municipal de Abrantes um cidadão agrediu o presidente da câmara devido a um litigio que tinha com a autarquia.
[10] Disponibilizada com emissão online e em canal aberto.
[11] Ana Fernanda Neves,”O Regulamento Geral de Proteção de Dados Pessoais e as reuniões das assembleias municipais”, in Revista das Assembleias Municipais e dos Eleitos Locais, n.º 15, Julho-Setembro de 2020.