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uma boa prática

Regulamento de registo de interesses da Assembleia Municipal
de Oeiras: uma boa prática

Manuel Ferreira Ramos

(Advogado e Coordenador do Centro de Valorização de Eleitos Locais – CVEL)

I. Introdução

Quando se regulamenta matéria referente a conflito de interesses há sempre uma profunda discussão, existe sempre o anúncio de uma solução definitiva que, depois, face às expectativas criadas sabe sempre a pouco.

Sempre foi assim, e essa fúria legislativa sempre surgiu na sequência de al- gum episódio aproveitado ou treslido, para gáudio da comunicação social da época.

Foi também assim com a Lei n.º 52/2019, de 31 de julho.

As voltas e reviravoltas, os golpes e os contragolpes, as ameaças de não apro- vação permitem que depois, independentemente dos títulos que se conseguem, se permita a aquisição de normas como o n.º 7 do artigo 18.º da referida Lei que afirma “sem prejuízo do disposto nas regras relativas aos deveres declaratórios sobre ren- dimentos e património, não está sujeita ao dever de registo a aceitação de ofertas, de trans- porte ou alojamento ocorra no contexto das relações das relações pessoais ou familiares”.

Percebe-se, assim, que se ouça como se fechou a janela e se escancarou a porta, num exagero compreensível no debate político.

Mas, como sempre, há um lado positivo, há espaço para que se faça mais mesmo sem Lei como se verifica nas assembleias municipais.

II. Conflito de interesses

Podemos definir conflito de interesses como “uma situação em que alguém, potencialmente ou aparentemente, se vê confrontado com uma determinada situação que poderá originar uma quebra na sua confiança enquanto profissional, podendo compro- meter de forma irreversível um negócio, uma relação jurídica ou uma simples decisão. Uma outra situação que se pode considerar como sendo de conflito de interesses é aquela em que alguém tendo um interesse pessoal ou privado em determinada matéria influencie ou tente influenciar o desempenho de outrem, de forma a que este atue ou seja parcial, atingindo assim o objetivo que pretende. Por interesse pessoal, ou privado entenda-se qualquer potencial vantagem para o próprio, para os seus familiares afins ou para o seu círculo de amigos” (1).

Estando mais ou menos consolidadas as definições, existindo um assinalável trabalho de disseminação de conhecimento, nomeadamente por parte da transparência e integridade (2), há temas centrais como o financiamento dos partidos e movimentos e, para além do registo de interesses, a forma como são controladas e verificadas as declarações, sendo certo que são públicas as lamentáveis circunstâncias por que tal não acontece (3).

A ética política, a ética em todos os comportamentos humanos, será central também nos próximos tempos.

Não obstante Luís de Sousa, com obra inquestionável e ímpar acerca da matéria de transparência e corrupção, ter afirmado, em 2019, que “a regulação da ética na política anda à rédea solta” (4).

Na atividade política, mais do que em qualquer outra atividade, nomeada- mente profissional, a questão do conflito de interesses e a relevância do seu registo, coloca-se de forma acutilante porque, para além do presente, ter-se-á sempre que ter em linha de conta de onde vem o político e para onde vai (5).

III. Sempre e ainda uma estranha forma de legislar

O legislador poderia evitar alguns problemas de interpretação. Poderia ser claro, mais claro.

A produção esdrúxula de legislação, a constante revisão e o retalho não justificarão que o legislador, neste caso concreto, queira regular o futuro, queira já regular as regiões administrativas avant la lettre.

A não ser isso o que terá levado a, mais uma vez, dizer “as demais autarquias locais não referidas no número anterior podem criar um registo de interesses mediante a deliberação das respectivas assembleias” (artigo 15.º, n.º 4, da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho).

Quais são as demais autarquias locais? São as freguesias com menos de 10000 eleitores? São as áreas metropolitanas? Custaria clarificar?

E custaria também clarificar se as assembleias municipais deveriam ter Código de Conduta?

Dir-se-á que cabe na sua autonomia a decisão de ter ou não ter esse Código de Conduta.

Mas, admitamos que, em concreto, uma determinada assembleia municipal decide discutir e aprovar um código de conduta. Considera-se que deve ser publicado também no Diário da República?

São questões para as quais obviamente se encontrará resposta atempadamente mas que se poderiam obter numa forma de legislar mais clara e com menos vírgulas, que são sempre fonte de novas surpresas e de problemas antigos nesta área.

IV. Uma boa prática: registo de interesses dos membros da assembleia municipal

Nem sempre as boas práticas têm a merecida distinção.

A história do “homem que mordeu o cão” é diariamente posta à prova.

Mais facilmente se ventila uma suspeita, um ser sem parecer, do que propriamente se sublinha e se aplaude uma boa prática.

Uma boa prática que vai para além do que é obrigatório legalmente, do que está estipulado e que, também por isso, merece realce.

Uma assembleia municipal, usando a sua autonomia consagrada constitucionalmente, aprovou um regulamento de registo de interesses, sem que ninguém a obrigasse e fê-lo por entendimento de que, com essa prática, estaria a melhorar a vida da assembleia e a democracia no município.

O caso concreto que se analisa é o da Assembleia Municipal de Oeiras.

Esse regulamento foi aprovado por unanimidade e, desde o dia 2 de maio de 2011, tem estado em vigor levando assim a que de 4 em 4 anos os membros da Assembleia Municipal de Oeiras preencham o seu registo de interesses.

Ao tempo a remissão era feita para a Lei n.º 64/93, de 26 de agosto, entretanto revogada pela já referida Lei n.º 52/2019, de 31 de julho.

A norma habilitante para este registo de interesses, chamemos-lhe assim, é o seu regimento (6), nomeadamente o seu artigo 17.º que, pela sua relevância, se transcreve:

“1- É criado na Assembleia Municipal, nos termos do n.º 1 do artigo 7-A da Lei n.º

64/93, de 26 de agosto, um registo de interesses dos deputados municipais, do qual devem constar todas as atividades ou interesses suscetíveis de gerar incompatibilidades ou impedimentos e/ou gerar conflito de interesses.

2- O registo de interesses é público podendo ser consultado pelos membros da assembleia que o requeiram, bem como por todos os cidadãos que invoquem comprovadamente interesse no seu conhecimento e, neste caso, após ser ouvido o deputado municipal e emitida decisão pela conferência de representantes dos grupos políticos municipais.

3- O registo de interesses fica à guarda do Presidente da Assembleia, sendo todas as questões com ele conexas tratadas em reunião de conferência de representantes dos grupos políticos municipais.

4- As incompatibilidades ou impedimentos e/ou conflitos de interesses a registar re-

sultam das normas em vigor nomeadamente da Lei n.º 64/93, de 26 de agosto.

5- O registo de interesses constará de documento escrito, arquivado em pasta e local próprio, conforme regulamento a aprovar.

6- O não cumprimento culposo deste dever pelos deputados municipais directamente eleitos fá-los incorrer na declaração de perda de mandato, para o que o presidente das assembleias deverá comunicar o facto às autoridades competentes”.

Fica assim demonstrado, se necessário fosse, o poder das assembleias municipais que muitas vezes e por muitas razões não é aproveitado e não é utilizado em toda a sua extensão.

(1 ) Teixeira, Glória; Freire, Helena, Working Papers, n.º 1, 2009, OBEGEF, Observatório de Estudo e Gestão da Fraude.

(2)  Com quem a ANAM tem, de resto, estabelecido, um protocolo e desenvolvido webinários acerca da transparência no poder local.

(3)  https://www.tsf.pt/portugal/sociedade/entidade-para-a-transparencia-continua-a-espera-de-instalacoes-para-entrar-em-funcionamento-12572109.html.

(4)  https://expresso.pt/politica/2019-07-09-Luis-de-Sousa-Regulacao-da-etica-na-politica-esta-a-redea-solta.

(5)  Ver Policy Paper SNI #2: Conflito de Interesses, Susana Coroado e Thierry Dias Coelho, 2012, TIAC.

(6)  A ANAM tem, desde sempre, defendido a relevância do regimento das assembleias municipais como forma e fórmula para serem ultrapassadas algumas questões que só pela sua regulação, em sede desse documento estruturante, podem ter solução indiscutível. Por isso, publicou, da autoria de Paulo Trigo Pereira, Ana Fernanda Neves e Luís Filipe Mota Almeida, “A valorização do papel e da eficácia das assembleias municipais: um regimento-tipo”. Também nesse sentido ainda a intervenção do Secretário de Estado Jorge Botelho aquando do 2.º Congresso da ANAM, realizado em Braga, no dia 19 de setembro de 2019 e que merecerá publicação a breve trecho.

Revista das Assembleias Municipais e dos Eleitos Locais • n.º 18 • Abril/Junho 2021